Por Rafael Godoy Zanicotti.
A pandemia de Covid-19 está afetando profundamente a forma como nos relacionamos e, no horizonte próximo, as medidas que temos tomado para enfrentá-la são em grande parte experimentais. A crise deflagrada, principalmente nos setores sanitário e econômico, não tem data para acabar e as consequências sociais ainda são incertas. Os negócios públicos também podem ser afetados neste cenário e, caso particularmente isso de fato esteja ocorrendo ou venha a acontecer, é importante que os envolvidos tomem medidas tanto para a preservação contratual como para a proteção pessoal. A primeira delas é a comunicação imediata e embasada.
Embora estejamos enfrentando uma nova doença, já sofremos, durante nossa trajetória de desenvolvimento da sociedade humana, problemas com efeitos similares. Então, ao contrário do que ocorre na área da saúde, os remédios jurídicos para tratar suas decorrências já estão postos à nossa disposição pela legislação. Nesse sentido, o Direito dos Negócios Públicos tem diversas previsões normativas específicas para o tratamento de eventos incertos e onerosos supervenientes à celebração de contrato entre particular e administração pública, aplicáveis a depender da natureza da relação obrigacional estabelecida.
Como regra genérica de contratação pública, a Lei 8.666 – que rege contratos de obra, prestação de serviços e fornecimento – estabelece a proteção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato pela assunção total dos impactos contratuais decorrentes de fatos supervenientes imprevisíveis ou previsíveis de consequências incalculáveis pela administração pública. Isso é uma garantia ao particular contratado pelo poder que a contratante pública tem de modificar o contrato, rescindi-lo, fiscalizar sua execução, aplicar sanções ao contratado e até mesmo assumir o controle temporário de recursos nele empreendidos. É, em outras palavras, um contrapeso, dado pelo regime de direito público desses contratos, a essas prerrogativas extraordinárias, estranhas às contratações pautadas pelo direito privado.
Quando a contratante é uma empresa estatal, a regência normativa da contratação é distinta. O regime é de direito privado por determinação constitucional de que as estatais devem receber o mesmo tratamento das empresas privadas quanto aos seus direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários. A regra, então, é o compartilhamento entre as partes dos danos advindos desses eventos extraordinários e extracontratuais. Por isso, a Lei 13.303, que regula as empresas estatais, determina como elemento essencial de contrato a cláusula de alocação de riscos a fim de delimitar o equilíbrio econômico-financeiro inicial. A chave de ouro dessa partilha é atribuir determinado risco para quem tenha melhor condição de administrá-lo. Evidentemente, diante da nossa limitação humana de fazer previsões e processar informações, não há como essa matriz de riscos ser extenuante. Para tais hipóteses lacunares, a lei mencionada apresenta solução similar àquela da Lei 8.666 – os impactos contratuais decorrentes devem ser assumidos pela administração pública.
Nas concessões e parcerias público-privadas, o regime jurídico é, como nas contratações gerais da administração pública, de direito público. Contudo, a natureza das concessões e PPP é distinta da dos contratos públicos comuns: são arranjos negociais de longuíssimo prazo, inerentemente incompletos, que demandam considerável investimento do contratado particular. O equilíbrio econômico-financeiro também é garantido, mas pautado contratualmente pela repartição de riscos. Mais uma vez, pode enfrentar-se na execução as consequências de nossa incapacidade cognitiva de previsão e processamento, e ocorrer um evento cujo risco é atribuído a uma das partes, mas seu efeito danoso é sentido pela outra. Nessa hipótese, o processo de reequilíbrio econômico-financeiro deve ter como objetivo restabelecer a condição contratual anterior à ocorrência do evento que causou o desequilíbrio, a partir de um referencial que represente o contrato em estado de equilíbrio, a fim de que a parte lesada seja compensada adequadamente.
Como detalhado, o tratamento jurídico aplicável diante de um evento como a pandemia de Covid-19, depende do tipo de contratação celebrada. Mas ainda assim, para o cabimento dos remédios jurídicos postos à disposição pela legislação, há pontos comuns em todos esses tipos de contratação – o evento deve causar impacto danoso particularmente na execução contratual e isso deve ser comunicado à outra parte por quem está sendo afligido, contemporaneamente à sua ocorrência, mesmo que seus efeitos não possam ser ainda completamente mensurados. Portanto, caso essa epidemia de proporção global esteja afetando a sua execução contratual, o importante é comunicar tal situação, demonstrando como esse evento vem causando retardação ou impedimento da atividade acordada.
*Rafael Godoy Zanicotti é advogado, responsável pelo departamento de contratos de Neiva de Lima, Zanicotti – Advogados.
Foto: Cesar Fermino/Picspree.